domingo, 22 de fevereiro de 2009

A SAUDADE


Durante a época de Carnaval sinto muito a falta dos meus amigos. Dantes era tudo tão divertido!
Lembro-me sobretudo do Al Berto, da Rosário Estevan, do Wladimir Franklin, do Virgilio, do meu irmão-do-meio Vicente. Sinto uma imensa saudade, que o Carnaval não consegue anular.
Eles andam todos por aqui. Eu ouço-os nos batimentos na madeira das estantes e nos olhos perplexos do gato da vizinha. Quem acredita em reencarnações sabe do que estou a falar.
Mas, para não deixar passar esta data de saudade, vou pôr no meu Blog o meu prefácio ao livro do Centro Cultural Emmerico Nunes sobre o meu querido amigo Wladimir Franklin, cortado da vida abruptamente.
DE PROFUNDIS
"Falo-lhes das profundezas da terra, meus amigos. Da terra onde depositaram os restos daquilo que um dia fui. Falo a todos vós que ainda não experimentaram a solidão da morte, a lassidão do Nada, a participação do Todo universal da qual fazemos indiferenciadamente parte integrante. Falo-lhes do local único aonde se conhece a verdade, onde se desconhece a diferença e aonde somos todos inevitavelmente iguais, onde voltamos finalmente apenas ao pó original.
Sobrevivo ainda na alma de todos aqueles que me amaram porque o Amor é superior à Morte e a contraria. Sobrevivo apenas por vocês, todos os meus amigos que não me querem esquecer.
Sei que o tempo acabará por me matar na indiferença do esquecmento mas, por enquanto, estou tão vivo quanto vós no coração pulsante de todos os que quiseram o Bem.
E eu não vos consigo esquecer porque vocês não se esquecem de mim. Esqueçam-me, por favor, entreguem-me finalmente ao meu criador, deixem-me partir para a Luz, deixem-me dormir em paz.
A minha vida foi um enorme mar de escolhos aonde tive alguns abrigos. Todos eles eu recebi com gratidão... fui sempre mais grato na minha vida do que exigente. Fui sempre humilde, embora fosse grande... essa é uma das características inimitáveis nos Grandes: serem humildes.
Os outros, aqueles que querem ser mais do si próprios, tornam-me apenas apanágio do ridículo. São anões agigantados pelos ventos do destino que desempenham papéis provisórios que as circunstâncias lhes conferiram, mas no fundo são "ninguém", construções virtuais de um universo fictício que sofre de auto-consumpção, como as doenças tuberculosas ou autofágicas... comem os seus próprios membros depois de roerem as unhas de não serem o que demonstram ser. Continuam cegamente numa predação contínua de si mesmos até à sua extinsão.
A minha vida porém foi dolorosa e dramática, como deve sera vida de um artista. Cumpri integralmente o meu papel sem esquecer uma única 'deixa'.
O meu cenário foi brilhante e catastrófico qual tragédia Grega.
E agora aqui, das profundezas do meu leito derradeiro, envio-lhes um sinal, uma recordação de coisa nenhuma, porque o pior da morte é o esquecimento. Tudo deixa de ter importância, de ter contexto neste olvido, porque a morte é a libertação de todas as insuficiências: é a suficiência em si mesmo.
Quando eu voltar, porque é claro que vou voltar, quero redimir-me como Napoleão, no mínimo. Não o humilde artista a quem nunca em vida ninguém reconheceu. Serei tirano. Um Gilles de Retz. E aviltarei a todos os patéticos e bem comportados fazedores de uma moral de mentira que esconde a infâmia, a vida dupla e a corrupção generalizada.
Fabuloso, organizado e mau serei eu, para punir a mediocridade saloia e boçal com que destruíram a minha vida criativa.
Não fossem aqueles que me compreenderam, nunca teria feito nada na vida, seria mais um Jorge de Sena exilado em terras de outro país ou um mendigo por opção.
Portugal é um país castrante que apenas aceita a medianía, não é génio.
Há um fenómeno de ciúme nacional que só aceita compreender a nossa obra depois de estarmos mortos. Como se os insultássemos de alguma forma por lhes mostrarmos a verdade escondida debaixo da sua pose de circunstância.
Eu não correspondia de facto à imagem que um "artista" para eles deve ter. Nem era cordato, quando não gostava do que via, nem sequer me vestia como eles, nem sequer tinha os mesmos gostos politicamente correctos. Era uma espécie de «intocável» indiano de quem eles precisavam serviços bem feitos... desde que isso resultasse no seu próprio proveito.
Mas não me queixo de nada, nunca me queixei. Deixei aos meus amigos o atributo que outros me devem... sofrer por mim o desprezível papel que me atribuiram numa peça que nunca foi minha.
É claro que nunca ficarei famoso nem entrarei na Hist´roa. Tanto se me dá! A História é uma sequência de indignidades admitidas e reescritas ao sabor dos tempos que correm. É bem melhor não participar nelas.
Mas para quem me recordar estarei sempre lá, com o meu sorriso irónico, o meu olhar loquaz, a minha timidez translúcida e o meu cabelho sem um grisalho, que era o meu orgulho.
Agora sou apenas uma nuvem no céu de Sines, uma brisa que vos afaga o rosto ao passar, o raio de sol que brilha por entre as nuvens depois da tempestade passar.
No fundo, não foi isso sempre aquilo que eu fui? Sempre tão suave que ninguém me notou, tão cuidadoso com os outros que lhes era indiferente?
Porque, só os brutos e os cobardes são barulhentos e fazem alarde, à falta de outras qualidades que não encontram em si.
Eu fui sempre tão completamente inocente de coisa nenhuma! O meu Deus sempre morou em templos manufacturados por mãos mansas.
Se tudo o que é verdade deve sempre converter-se numa religião: fui um monge!
Nunca me ensinaram a ser feliz, mas eu pensei que podia sê-lo por instinto. Enganei-me: pela terrível alquimia do egoísmo vocês converteram o vosso remorso em raiva. (...)
(João do O'Pacheco)
Prefácio de abertura de "como se uma janela se abrisse"
Edição do Centro Cultural Emmerico Nunes