sábado, 14 de junho de 2008

TOMAR O CÉU DE ASSALTO

"O novo homem, Zorba o Buda" tem que ser tão objectivo quanto um cientista, tão sensível quanto um poeta e morar no centro da alma como um místico".
(Bhagwan Shree Rajneesh)

Aqui há uns dias, na esplanada de um café, eu e uma amiga minha tecíamos divertidamente considerações sobre a natureza humana enquanto observávamos os transeuntes. Ela é uma adepta fervorosa das teorias de Franz Joseph Gall que na viragem do séc. XVIII criou a Frenologia. A Frenologia baseia-se na análise da formação do crânio humano, suas diversas proeminências e as suas relações com os comportamentos e o carácter de um indivíduo. Durante todo o séc. XIX esta teoria que dizia adivinhar a personalidade devido a certas protuberências cranianas, que indicavam faculdades ou tendências mentais específicas, foi muito utilizada, tanto por escritores do género policial como por psicólogos criminais que fizeram mapas do crânio humano e os relacionaram com célebres bandidos. Esta ciência caiu em desuso e tornou-se algo obsoleta com o surgimento do estudo glandular e hormonal que veio revolucionar o mundo médico e a entronizar a Endocrinologia como explicação científica mais apropriada para mais ou menos quase tudo o que se passa nos humores humanos e o resultado comportamental que daí advém.
A minha amiga tinha acabado de encontrar, entre a multidão em espera na caixa de Multibanco, um potencial assassino, pela curvatura abrupta posterior do crânio e os supraciliares hiper-salientes, quando eu a interrompi com uma frase que a deixou muito pensativa: "Os Anarquistas dizem que todo o ser humano é intrinsecamente bom --- o que se prova no apelo á urgência em todos os seres humano quando uma criança cai ---, e os Taoistas dizem que todas as coisas se organizam correctamente se forem deixadas em paz. Nesse caso, como podem haver seres propensos ao assassinato e outros à santidade?"
"Se a questão é meramente argumentativa", disse ela, "a resposta é fácil: os Anarquistas são individualistas solidários que não aceitam o princípio de autoridade mas que na sua auto-organização encontram uma dinâmica de cooperação a que os sociocratas chamam de "auto-gestão": o único crime aqui não é o caos natural mas sim a reordenação pela arbitrariedade. Os Taoistas acreditam na causa e efeito daquilo que foi ridiculamente apodado de "efeito de borboleta": todas as coisas tendem a compensar os excessos umas das outras para se manterem em equilíbrio. Nada impede que essa compensação não crie aberrações pontuais: eis os santos e os assassinos, os longos verões tranquilos e os furiosos tsunamis."
Continuou a contemplar calmamente o seu potencial assassino que, segundo ela, falava com uma ninfomaníaca que seria a sua próxima vítima enquanto eu reflectia sobre as semelhanças evidentes do Anarquismo e do Taoismo.
Perante o descalabro da política económica do mundo socialista civilizado actual que continua a ceder á gigantesca máquina capitalista de uma maneira confrangedora, agradava-me contemplar mentalmente a ideia de um Estado completamente desmantelado onde as pessoas trocassem couves por galinhas ou trabalho por comida e pudessem plantar salsa no quintal sem a presença da polícia da qualidade de costumes.
Mas a sociedade optou de forma dramática pela massificação das consciências e condicionamento psicológico de paradigmas num mundo ilusório de consumo desnecessário para suportar uma máquina produtiva demente e alucinada que mantém ad eternum as classes sociais nas mesmas posições relativas com pequenos golpes palacianos, tão só, de substituição da marca registada predominante... E tudo isto em nome da Ordem.
Trocou-se assim a solidariedade de que tanto falava Kropotkin, em "Apoio Mútuo", pelo poder coercivo de uma pseudo-democracia refém do Capitalismo.
E quando a Ordem se estabelece e as "bestas de produção" estão calmas, injecta-se uma dose q.b. de desordem, usa-se a máquina bem oleada de guerra e retoma-se o circulo vicioso da intimidação/controlo, paz/submissão, nem que seja apenas para relembrar que o sistema imunitário está funcional e não admite no seu seio elementos de caos a não ser para comprovar a sua eficácia. E como foi "oficialmente" declarado que o grau de inteligência de cada um é a rapidez na capacidade de adaptação ao meio, a grande 'turba multa' adapta-se e nasce uma nova raça: os conformistas esclarecidos, ou seja, os servos da máquina.
(Tenho uma admiração muito especial por dois grandes escritores visionários que anteciparam tudo isto décadas atrás: George Orwell e Aldous Huxley.)
Este estado geral de graça conseguido pelo Capitalismo através da alienação das consciências na oferta de novos prazeres consumíveis, criação de hábitos-vícios (adições) substitutos, sub-culturas alternativas e mesmo contra-culturas higienicamente estirilizadas (e rentabilizadas), criou a ilusão da liberdade de movimento e pensamento numa sociedade que se designou como "liberal" e cujo mecanismo de propulsão é tão eficaz como a roda de um sem-fim numa gaiola de hamsters.
Alguns filósofos mais atentos apelidaram este 'statu quo' criado por um grupo de heresiarcas que financeiramente dominam o planeta de "tomar o Céu de assalto".
Este pensamento orgulhoso e balofo que cresceu á sombra do humanismo, colocando o Homem no centro do universo e desprezando tudo o que não lhe fosse de alguma utilidade, inclusive os seus semelhantes, não contou porém com um elemento de caos que não fora considerado na equação primeva: a Terra.
James Lovelock, o célebre cientista da Royal Society de Londres, que apresentou a "Teoria de Gaia" já aqui há uns bons anos, nos tinha avisado que estávamos lidando não com um "calhau inerte" mas com um ser vivo de uma sofisticação que o tornava ininteligível para a frágil compreensão humana.
Todos os gestos dos seres humanos se tornam minúsculos e mesquinhos quando observados do ponto de vista da Terra. E nós, seguramente, para ela, não passamos de uma comichão que durante algum tempo hesitou em coçar por desprazer próprio.
A insistência do Homem em não se aperceber 'sequer' onde habita, na vã glória do seu orgulho embriagado em Possuir, levou-o a criar o seu paraíso privado, aqui e agora, seja a que preço for.
Talvez a sua maior ambição se torne no seu maior pecado. Que espécie de Céu construirá o Homem se o homem o não merecer?

(João do O'Pacheco.
Junho 2008)